PL da Dosimetria expõe fissuras no Congresso e relativiza crimes contra a democracia

A aprovação do PL 2162/2023, conhecido como PL da Dosimetria, pelo Senado Federal, escancara uma das discussões mais delicadas do pós-8 de janeiro: como o Estado brasileiro escolhe reagir a ataques diretos ao regime democrático.

Sob o argumento de “recalibrar penas” e promover a “pacificação nacional”, o Congresso avança em uma proposta que, na prática, reduz punições impostas a condenados por tentativa de golpe de Estado e atos antidemocráticos. O gesto ocorre pouco mais de um ano após os ataques às sedes dos Três Poderes, episódio que chocou o país e repercutiu internacionalmente.

Quando a exceção vira regra

O coração do projeto está na mudança da dosimetria penal: crimes cometidos no mesmo contexto deixam de ter penas somadas, passando a aplicar apenas a punição mais grave. Trata-se de uma alteração técnica com efeitos políticos profundos.

A medida não surge de uma revisão ampla do sistema penal, mas de um contexto específico, com alvos bem definidos. Entre os possíveis beneficiados estão nomes centrais das investigações sobre a tentativa de ruptura institucional, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro e integrantes do alto escalão militar e governamental de seu governo.

Essa característica reforça críticas de que o projeto não atende a um princípio geral de justiça, mas a uma conveniência política momentânea.

O discurso da pacificação e o silêncio sobre as vítimas institucionais

Defensores do PL afirmam que a redução das penas ajudaria a “virar a página” e diminuir tensões. O problema é que essa narrativa ignora um elemento essencial: as instituições também são vítimas.

O ataque de 8 de janeiro não foi um protesto desorganizado, mas uma ação que buscava desacreditar eleições, pressionar as Forças Armadas e criar um ambiente favorável à ruptura democrática. Ao suavizar as punições, o Estado corre o risco de normalizar esse tipo de violência política.

Pacificação sem responsabilização não reconcilia — apenas adia conflitos.

Incoerência legislativa e mensagem contraditória

A aprovação do PL ocorre em um momento de evidente incoerência legislativa. Recentemente, o Senado endureceu leis contra facções criminosas, ampliando penas e restringindo progressões de regime. Já para crimes contra o Estado Democrático de Direito, a resposta foi inversa: flexibilização.

A mensagem implícita é preocupante: o sistema penal é rigoroso com crimes comuns, mas complacente com crimes políticos cometidos por grupos organizados e influentes.

O impacto além do 8 de janeiro

Especialistas alertam que a mudança na dosimetria não se limita aos condenados pelos atos golpistas. A nova regra pode alcançar outros crimes comuns, alterando progressões de regime e reduzindo penas em diferentes contextos, o que amplia ainda mais a controvérsia.

Ou seja, um projeto apresentado como excepcional pode gerar efeitos permanentes e imprevisíveis no sistema de Justiça criminal brasileiro.

A responsabilidade do Executivo

A palavra final agora está nas mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que já sinalizou que avaliará o texto com cautela. A decisão, seja pela sanção ou veto, terá peso histórico.

Sancionar o projeto pode ser interpretado como um gesto de conciliação política, mas também como um recuo simbólico na defesa da democracia. Vetá-lo, por outro lado, reacende tensões no Congresso, mas reafirma que golpes — ainda que fracassados — exigem resposta firme do Estado.

Um teste para a democracia brasileira

Mais do que um debate jurídico, o PL da Dosimetria se tornou um teste institucional. Ele revela como o país lida com sua própria fragilidade democrática e se está disposto a aprender com os erros recentes.

A história mostra que democracias não se enfraquecem apenas por golpes bem-sucedidos, mas também pela tolerância aos golpes que falham.